Olá!
Nesta edição, a noção de identidade, pertencimento e lugar no mundo nos guia: um lugar na nossa memória, a casa, os discos, os livros do avô, e grandes histórias contadas no cinema nacional – que acabam sendo a nossa história, em sentido amplo, coletivo.
Apresentamos o trabalho das ilustradoras Bárbara Rodrigues e Fernanda Benachio, do fotógrafo Artur Lahoz e a crônica de Thiago Galvani. E, no quadro Envolvimentos, conversamos com Flora Brina, ilustradora, tatuadora e estudante de arquitetura de Belo Horizonte.
Além disso, Wanda indica coisas e você confere lançamentos e eventos que vão rolar nos próximos dias em BH.
Esperamos que gostem!
Cinema brasileiro
Confira mais trabalhos de Bárbara Rodrigues aqui.
Em vários lugares
Conheça mais o de Fernanda Benachio aqui.
Os Meninos Desses Tal de Iê Iê Iê
Por Thiago Galvani
Eu subia na cadeira pra pegar os Lima Barreto que estavam na estante mais alta e mais à direita do escritório do meu avô. Tinha anos que estavam ali e só agora eu tinha a altura e a falta de juízo para pegá-los. Da última vez garimpei dois Sherlock Holmes na estante da esquerda e não alcancei a da direita, desistindo rápido porque já tinha pego muitos livros e porque minha mãe ficou desesperada de eu cair e me estabanar no chão. Agora só restava os Lima Barreto e só. Esse pequeno escritório, que descobri que existia aos doze anos, fica protegido do mundo no apartamento do meu avô em Petrópolis, escondido no fundo da cozinha e do lavabo até da empregada que desistiu de passar pano décadas atrás porque ninguém vinha visitá-lo. Naquele momento eu tinha tudo menos a coleção do Dostoiévski, exibida com orgulho no corredor principal e que meu vô não me deixava levar pra ela não perder valor. Não havia mais nada pra mim ali, naquela mistureba de livros de medicina, matemática, romances de baixa qualidade e enciclopédias do século passado. Todos os cadernos que pertenceram a minha mãe, a meus tios e a meus avós estavam confinados em dois armários médios para toda a eternidade. Então, como bom caçula da família, fui fuçar as memórias deles em outro lugar.
Na grande sala onde fica o piano de minha avó, há armários e gavetas entulhados de ninharias que nunca foram catalogadas. Encontrei uma pequena porém obtusa gaveta de forma retangular cuja altura era maior que o comprimento e fiquei intrigado. O vento frio de Petrópolis entrava pela grande janela que dava pra varanda, mas meu casaco cinza que ganhei aos doze anos e que me cabe até hoje me mantinha quentinho na sala onde passei tantos natais e réveillons. Abri a gaveta e encontrei uma coleção de discos de vinil esquecidos pelo tempo: Novos Baianos, Adoniran Barbosa, Beatles, Pink Floyd, Mozart, Milton Nascimento e muitos outros. Meu gosto musical resumido na herança de todas as décadas que meus tios moraram ali. Pink Floyd era claramente do tio Fernando, o Milton da tia Bia e os Novos Baianos da minha mãe. Mozart eu não tinha dúvida que era da minha vó, já vi ela tocando algumas partituras dele no piano e até me arrisquei a tocar uma na época que ela tentou me ensinar, mas eu era muito novo e minha mão era muito pequena pra alcançar a nota sol então desisti. Sobrou então Beatles e Adoniran Barbosa, dois dos meus artistas favoritos de todos os tempos. O Adoniran podia ser tanto do meu avô quanto da minha avó, mas a história da capa do palhaço triste recusada para aquele álbum ressoava tanto comigo que no meu coração eu tive a certeza que era do meu avô. Agora, se o álbum dos Beatles fosse um dos projetos mais ambiciosos e experimentais deles o disco seria do tio Fernando, mas sendo uma coletânea dos reis do iê iê iê, contendo as músicas bregas do começo de carreira que eu amo tanto, deduzi com facilidade que também era do meu avô.
A vitrola nova ficava ao lado do sofá perto da janela e chegar nela seria uma epopeia contra o vento frio que entrava. Eu teria que passar pela longa mesa de jantar das inúmeras ceias, pelo piano da vovó e pelos dois sofás, um diante do outro, para fechar a varanda e enfim poder ouvir os discos. Tinha outro toca-discos em cima da estante, um tão potente que quando vovó colocava pra tocar suas músicas italianas no natal o prédio inteiro podia ouvir e reclamar do barulho, mas eu não consegui fazê-la funcionar. Quando me contaram dessas histórias de vovó ouvindo música alta, me lembrei de minha mãe colocando Wilson Simonal ou outro artista brasileiro de 50 anos atrás pra tocar nos domingos de manhã e fiquei feliz. Caminhei pelo chão de madeira que rangia a cada passo até chegar no tapete que dividia a sala em duas, uma parte para a mesa de jantar e outra para os sofás. Fechei a varanda com a porta de vidro que dava para o clube Petropolitano e vi a cena habitual de duas pessoas jogando tênis na grande construção que nada é senão as cinzas de uma brasa que queimava muito tempos atrás. Olho pra vitrola nova, moderna, que toca rádio e também tem bluetooth. Vovô e tio Fernando a compraram depois que a vovó faleceu; ela apareceu ali como quem não quer nada e acho que só a ouvi tocar uma vez quando foi sintonizada na Rádio Mix na época em que foi novidade na casa.
Sentei no chão com os discos que garimpei empilhados ao meu lado e comecei pelo Acabou Chorare dos Novos Baianos, uma mistura alegre de samba e rock que tentou animar um país triste. Minha mãe me contava que ela e minha tia saíam de casa às escondidas pra ir no Petropolitano ver shows quando ainda eram adolescentes, e que meu tio dedurava elas pro vovô e pra vovó quase sempre. Penso n’As Meninas de Fagundes Telles e na minha mãe: Lorena Vaz Leme. Elas viram os shows de Chico, Caetano e até Milton na época que o Brasil mais precisava de música, tendo só que atravessar um córrego desbotado pelas cervejarias da cidade. Quando era criança minha mãe via o córrego mudar de cor a cada dia graças às fábricas de roupa de montanhas acima; pra mim ele já veio cinza, talvez por mudar tanto de cor. O garoto na capa do disco Minas do Milton me encarou e pensei nas vezes que o ouvi pelo Spotify na minha época de calouro. O desastre de Brumadinho acontecera dias antes de eu ter voado com meu pai pra BH fazer minha matrícula e o acompanhamos no noticiário pela TV do hotel do lado da universidade.
Ouvi o barulho de chaves no meio de A Menina Dança e, de tão imerso no som da vitrola, pensei que era uma melodia exclusiva do LP. Na verdade, o vovô chegava de sua habitual caminhada pelo centro de Petrópolis, onde cumprimentava meio mundo de gente. Dr. Santoro - ou Tuninho, para os íntimos - morou na rua do córrego e do Petropolitano desde que se mudou do Rio pouco depois de se formar, indo a trabalho pela Unimed. Ficou primeiro num hotel do lado da praça do XIV-Bis, depois numa casa grande e espaçosa onde agora é a fábrica da Bohemia e, nos anos 70, foi pro apartamento onde escutei Acabou Chorare, em frente ao Petropolitano. Só reparei nele quando me interrompeu. Chegou de mansinho com suas pantufas e se sentou no sofá oposto ao da vitrola, no sofá onde fica a foto de vovô e vovó em suas bodas de ouro. Desde que vovó morreu ele tem passado as manhãs, tardes e noites sentado ao lado desse retrato, lendo livros sob a luz do abajur ou jogando sudoku e caça palavras. Tomei um susto quando me voltei a cabeça, e ele esboçava um sorriso aprazível que convergia com sua fama, na família e na cidade, de bonzinho. Vovô era assim: um homem meigo e brincalhão, mas mamãe e meus tios falam que ele já teve sua época de pai carrasco. Por sorte nunca conheci esse homem, o máximo que presenciei foi o velho aburrido nos fins de festas, sentado no assento mais confortável do recinto de cara fechada para todos menos pros seus netos.
Me perguntou o que escutava e onde tinha achado os discos. Perguntei, pra ter certeza, de quem eram e vi que tinha acertado todos. Vovô queria ouvir Beatles, e eu também. A coletânea começava com Can’t Buy Me Love, música que Paul Mccartney ainda usa pra abrir seus shows mais de 50 anos depois de lançada. Uma música agitada que fez diversos jovens e adultos desmaiarem em estádios com o ritmo do rock e com a presença mística dos reis do iê iê iê. Dr. Santoro batia a pantufa no chão acompanhando a bateria do Ringo e quando subi o olhar buscando aqueles olhos azuis de piscina do vovô, encontrei-o com o rosto fechado, sério, como se meditasse ao som dos Fab Four. Eu apenas meneava os ombros e o pescoço, tentando me sintonizar à serenidade dele. No solo do George, vovô começou a bater a cabeça no ritmo, e eu abri um sorriso com a cena do idoso de 80 anos sendo levado pela música brega de quatro adolescentes irreverentes. Vovô continuava focado na melodia, e começou a bater os dedos no braço do sofá com o cenho franzido no último refrão da música. Quando ela acabou, ele cerrou todo movimento e inclinou a cabeça do mesmo jeito que eu faço quando fico cismado com alguma coisa, ainda de olho fechado.
Começou então Love Me Do, uma musiquinha besta de amor como a que tocava e como tantas outras que Paul McCartney deixou por aí nos seus 60 anos de carreira. Vovô retoma seu balanço e eu olho pro retrato dele e da vovó, os dois sorrindo. Ele de terno preto e cabelo branco, ela com um vestido dourado e cabelo pintado de roxo escuro num fundo de florestas, montanhas e céu azul como o que se vê pela janela além do Petropolitano. Vovô me contou que se conheceram numa reunião da família da minha avó, os Turano’s, e que só foi parar lá porque seu padrasto era amigo de um deles. Como na canção, tio Paulo, irmão da vovó, disse que foi trabalhoso pro vovô conquistar o amor dela; não sei os detalhes da história, só que ela tinha outros interessados, mas no fim tudo deu certo. Desse amor surgiram diversas histórias recontadas ano após ano na tradicional reunião dos Turano’s, que acontecem até hoje como bom ítalo-brasileiros que somos. Na época que os reis do iê iê iê ainda tocavam no rádio, eles foram num restaurante chique do Rio de Janeiro e encontraram um ator de novelas. Vovó ficou animada, mas minha bisa ficou brava quando lhe contaram, disse pra eles que televisão é coisa de gente vulgar.
Quando Love Me Do acabou, ouvimos uma nota de guitarra e o som do retorno do amplificador. Vovô abriu os olhos animado porque, como eu, tão logo reconheceu que tocava I Feel Fine. Eu apenas sorri de volta ao sorriso que ele abriu e, como acontecia sempre que passávamos mais de dois minutos juntos, - sou o único neto que pode dizer isso -, começou a me contar uma história de décadas atrás. Ele e tio Carlinhos, seu meio-irmão, assistiam ao show dos Beatles no cinema, e quando começou a tocar essa música todo mundo ficou maluco, se levantou das cadeiras e foi dançar. Tio Carlinhos aproveitou a histeria e acendeu um cigarro e o escondeu num tubo de M&M pra ninguém ver a chama, inclusive meu avô, que sempre odiou cigarro. Eu ri da história e do Tio Carlinho, mas sempre fico intrigado quando vovô menciona que era filho de uma mãe divorciada considerando que tinha só 10 anos na época que rolou o desquite. Ele voltou mais agitado à meditação e eu fiquei pensando sobre a bisa que nunca conheci e como ele deve ter amparado minha mãe quando ela se separou do meu pai.
Enquanto ele se remexia ao som da música, peguei o LP do Adoniran Barbosa (1980) que tinha separado antes e passei os olhos sobre a setlist. Era uma coletânea dos hits dele, mas senti falta de um: Já Fui uma Brasa. A música fala sobre como o samba perdeu o espaço no rádio e na televisão pros meninos desse tal de iê iê iê, mas não guarda ressentimento porque “com eles canta a voz do povo”. Uma reflexão de um homem de 60 anos, mas com voz de 80 por conta do cigarro, sobre como a Beatlemania e a invasão de sons estrangeiros foi assimilada pela juventude da época e virou febre no país do samba e da bossa-nova mesmo sem sequer terem pisado aqui. Na minha memória ainda vejo vovô de olhos fechados ao lado do retrato da vovó batendo o pé ao som de Beatles, ainda sinto o cheiro de mofo dos armários da bibliotequinha dele e ainda ouço os jogadores de tênis do Petropolitano. Na música, Adoniran termina o refrão com “e eu que já fui uma brasa, se assoprarem posso acender de novo” e é assim que a memória do vovô vive em mim: assopro ela sempre que posso mesmo sabendo que ele teria um piripaque se descobrisse que comecei a fumar.
Ponto de Fuga




Conheça mais sobre o trabalho de Artur Lahoz no fotolivro “Klexos”, o mais recente do artista.
Envolvimentos com Flora Brina
Nesta edição do quadro Envolvimentos, conversamos com Flora Brina, artista visual, tatuadora e estudante de arquitetura e urbanismo. Natural de Belo Horizonte, hoje mora em São Paulo, onde faz faculdade na FAUUSP. Em seu trabalho, o desenho surge como ferramenta de compreensão e criação de vínculo com a cidade, com o outro e com o próprio campo emocional.
Saiba mais sobre o trabalho e as referências da artista.
Revista Wanda: O que é ser artista para você?
Quando eu penso sobre o ser artista, me vem a ideia do fluxo criativo e do “ser um canal” para algo que vem, atravessa e vai. A partir disso, acho legal a analogia do artista com o leito de um rio. Para que a água flua de forma saudável, é preciso um bom abastecimento das nascentes, a presença da mata ciliar, e de outros inúmeros fatores combinados. Mas também acho que esse fluxo criativo acontece com todo mundo, em diferentes frequências e intensidades, independentemente do ofício. Então, talvez, o artista seja essa pessoa que se compromete de forma consciente com o cuidado do ecossistema do próprio rio, e faça disso o ofício.
Como se dão as intersecções entre as artes visuais e a arquitetura nas suas obras?
Me interessa investigar os momentos em que o desenho livre esbarra com a representação arquitetônica. No primeiro, a forma vai se dando a partir do que surge no caminho, uma espécie de deriva do lápis no papel. Na outra, a imagem já se inicia com objetivo claro de ressaltar um aspecto específico da arquitetura, e todas as escolhas gráficas buscam convergir para esse objetivo. Diante disso, sinto uma alegria particular quando faço desenhos livres em cima de papéis de rascunho de processos de projeto. O desenho técnico dá suporte e amparo, enquanto o desenho livre traz leveza e singularidade. Nos desenhos de observação do entorno e da cidade esse encontro entre rigidez e soltura aparece um pouco também, uma vez que mesmo buscando semelhança com a referência, no caminho se dá uma série de desvios e distorções que nos escapam ao controle. Acho que ao incorporar esses acidentes de percurso o desenho fica mais solto e gostoso de olhar depois.
Sendo artista visual, arquiteta e tatuadora: como é criar em diferentes suportes?
Acho que papel, computador e pele são suportes que demandam procedimentos bem diferentes. Mas isso tudo se mistura em alguma medida, até porque dependendo da situação eu uso os mesmos softwares. Já usei Autocad e Sketchup para desenvolver desenhos de tatuagem, por exemplo. Mas acho que o ponto em comum no processo de arquitetura, tatuagem e ilustração é a fase inicial de esboço e experimentação mais solta no papel, à mão.
Indique um artista que você gosta e acha que mais pessoas deveriam conhecer
A Belkis Ayón! Foi uma gravurista cubana que trabalhou com a colografia, uma técnica de gravura em que a matriz é feita com a colagem de diferentes materiais e isso gera na impressão umas texturas e tonalidades bem interessantes. E o universo de símbolos das imagens que ela desenvolveu é super instigante.
Wanda indica!
Lançamentos imperdíveis
clara bicho part. Sophia Chablau - Cores da TV
Morro Fuji - Cores e Luzes
FBC, ogoin, Linguini, Nathan Morais, Pepito - O Que nos Impede
terraplana - salto no escuro
Jadsa - big bang
Lugar Algum - Não Volta
Essas e outras indicações da Wanda, você confere na nossa playlist no Spotify!
Pra sair um pouco das redes sociais
Um livro - Meus poemas preferidos, de Manuel Bandeira.
Um filme/série - Queer Eye, da Netflix.
Um texto - essa matéria da Lyara Vidal, para o UOL, sobre o romance nas entrelinhas dos fotógrafos Lee Miller e David E. Scherman.
Agenda cultural
Shows, espetáculos e outros rolês
Data: sábado, 05 de abril
Local: Parque Amilcar Vianna Martins (ao lado da Fumec), bairro Cruzeiro - Belo Horizonte
Horário: de 13h às 22h
Entrada: gratuita
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Dora Morelenbaum + Bruno Berle convidam Ana Frango Elétrico
Data: 11 de abril
Local: Autêntica - Rua Álvares Maciel, 312, Santa Efigênia - Belo Horizonte
Horário: 21h
Entrada: ingressos a partir de R$60 + taxas
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Baixo Mezanino apresenta: Exclusive Os Cabides & Clara Bicho
Data: 24 de abril
Local: Autêntica - Rua Álvares Maciel, 312, Santa Efigênia - Belo Horizonte
Horário: 20h
Entrada: ingressos a partir de R$25 + taxas
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Alter Eco - Festival de Música Independente
Data: 26 de abril
Local: Casa Matriz - Rua Espírito Santo, 1275, Centro - Belo Horizonte
Horário: a partir das 18h
Entrada: ingressos a partir de R$15 + taxas
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Noite Quente apresenta Marina Lima
Data: 30 de maio
Local: Grande Teatro Cemig Palácio das Artes - Av. Afonso Pena, 1537, Centro - Belo Horizonte
Horário: 21h
Entrada: ingressos a partir de R$100 + taxas
Que edição linda e sensível! literalmente chorei lendo o texto do thiago 😭❤️ muito feliz de contar com artistas tão incríveis nas nossas edições