Wanda #9: Anora, Carrie Bradshaw, Garota do Momento e... Belchior?
Papagaios! Carrie Bradshaw, Alessandra Poggi, Sean Baker e Os Mutantes se encontram numa mesa de bar do Brooklyn
Olá!
Nesta edição, saímos da Belo Horizonte para o Rio de Janeiro dos anos 50, damos uma voltinha por Nova Iorque e, então, voltamos para o Brasil, mas em plena ditadura militar.
Falamos sobre o ícone da cultura pop Sex and the City, e sobre outra produção de sucesso, que é recente, mas que já nasceu clássica, a novela Garota do Momento. Evocamos as intertextualidades entre dois dos maiores nomes da música brasileira, Os Mutantes e Belchior, e ainda falamos de um dos filmes que concorre ao Oscar contra Ainda Estou Aqui.
Esperamos que gostem!
Garota do Momento faz jus ao nome e é o melhor lançamento recente da Globo
Novela das seis da Globo é a coqueluche do momento!
Por Júlia Ennes
No ar no horário das 18h da Globo, a novela Garota do Momento, de Alessandra Poggi, tem sido o meu compromisso diário – e não só o meu. Segundos dados do Kantar Ibope e da BrandWatch/X, Garota do Momento é a novela da seis mais comentada da década.
Com trama envolvente e personagens cativantes, o folhetim trouxe um frescor à grade da emissora e já entrou para o hall dos grandes sucessos do horário, ao lado de Chocolate com Pimenta (2003), Alma Gêmea (2006) e Cravo e Rosa (2000). É uma daquelas histórias que nos prende e nos faz ficar ansiosos pelo capítulo seguinte – e lamentar que no domingo não tem novela.
Eu sei, caro leitor, que da última vez que escrevi sobre como uma novela da Globo tinha potencial, o caldo desandou e, honestamente, nem eu consigo mais assistir (cof cof Mania de Você). Mas desta vez, não sou só eu quem está falando, mas todo o público que tem feito Garota do Momento atingir bons pontos de audiência e dominar as redes sociais.
O sucesso é tão grande que, recentemente, a Globo começou a comercializar a trama no mercado internacional e anunciou que ela será esticada por pelo menos 18 capítulos extras, com a previsão de seguir no ar até junho de 2025. A decisão veio após a produção ter se mostrado um fenômeno tanto em termos de audiência quanto no aspecto comercial. Abafou a banca! Como diriam os personagens da própria novela.
A história acompanha Beatriz (Duda Santos), uma jovem criada pela avó, que acredita que sua mãe, Clarice (Carol Castro), morreu quando ela ainda era criança. Dezesseis anos depois, Beatriz vê uma foto da mãe em uma revista do Rio de Janeiro e decide ir reencontrá-la. No entanto, para surpresa de Beatriz, Clarice não a reconhece e tem uma nova família e até uma nova filha de mesmo nome, Bia (Maisa). O que ela não sabe é que Clarice perdeu a memória após um acidente e teve a nova vida forjada por Maristela (Lilia Cabral) e Juliano (Fábio Assunção).
Além de Alessandra Poggi, o texto conta com a colaboração de Adriana Chevalier, Aline Garbati, Mariani Ferreira, Pedro Alvarenga e Rita Lemgruber. A direção artística é de Natalia Grimberg, e a direção-geral de Jeferson De.
Alessandra Poggi mostra que é possível trazer debates sociais para o “horário das donas de casa”
Novelas das seis costumam ser mais leves. Dizem que os folhetins deste horário foram pensados especialmente para as donas de casa, para que elas pudessem mais ouvir do que assistir de fato, enquanto preparavam o jantar. Com o passar dos anos, os enredos foram tomando novas nuances, mas mantiveram essa leveza.
Garota do Momento tem sido descrita como uma “fábula de esperança” e, não por acaso, a história se passa no Brasil do fim da década de 50. Em entrevistas, a autora explicou que o recorte temporal foi escolhido pois existia nessa época um sentimento de sonho no Brasil, com a Copa do Mundo, a bossa nova e a construção de Brasília – um espírito de positividade de uma sociedade em transformação.
Apesar de ser uma trama inspiracional, Garota do Momento não fecha os olhos para os problemas da época, pelo contrário, os destaca e propõe ações. Numa fabulação crítica, a autora retrata um Rio de Janeiro dos anos 50 possível. Para isso, ela desenvolve personagens fortes e complexas, que enfrentam o racismo, sexismo, classismo, homofobia e outras questões que, apesar de ali falarem do passado, continuam sendo atuais e ressoando com o público.
Em entrevista a Variety (sim, Garota do Momento, ou She’s the One, também é destaque internacional!), quando perguntada sobre tratar desses assuntos “pesados”, a autora defendeu que é tudo uma questão de como abordar, para que o público fiel ao horário das 18h não os rejeite. "As pessoas abraçam e começam a refletir sobre essas questões. [...] É tudo uma questão de tom”, disse.
Novela que não tem vergonha de ser novela
Entendendo o que o público espera hoje não só do formato, mas também do horário que ocupa na grade, Alessandra Poggi usa e abusa de todos os artifícios clássicos do gênero (e com muito bom gosto). Clichês como a perda de memória, o triângulo amoroso, amor à primeira vista, amor proibido, enemies to lovers, reviravoltas para descobrir quem é pai de quem… Garota do Momento é uma novela que não tem vergonha de ser novela.
Só o plot principal já seria suficiente para nos prender, mas Poggi não para por aí. Como uma boa novela deve ser, enredo não é preso apenas nos personagens principais, mas conta com núcleos que têm histórias interessantes e bem desenvolvidas, com conflitos e motivações próprias – algo que falta, por exemplo, em Mania de Você, que demorou a introduzir e desenvolver os núcleos secundários.
Com isso, a gente torce por outros casais além do principal e sente raiva de outros “vilões”, como Nelson (Felipe Abib). Tudo é tão bem amarrado que o ritmo não cai, mesmo quando o foco do enredo sai de Beatriz, Clarice & Cia Ltda e vai para Edu e Celeste, o sonho de Lídia, a descoberta da sexualidade de Guto ou uma cena cômica do Alfredo Honório Show.
O sucesso de Garota do Momento se deve a uma junção de fatores. É a soma de uma premissa interessante, bom texto excelente e um belíssimo trabalho de direção de arte e fotografia – esta última, inclusive, mistura brilhantemente trechos de filmes de Humberto Mauro para construir o Rio de Janeiro dos anos 50. Além, é claro, um elenco de peso, com nomes consagrados como Lilia Cabral, Fábio Assunção, Danton Mello, Letícia Colin e Carol Castro, ao lado de uma nova geração de talentos como Duda Santos, Cauê Campos, João Vítor Silva, Débora Ozório e Caio Manhente. Até Pedro Novaes e Maisa, que causaram certo receio no início, têm entregue boas atuações.
Para além da história, que já é muito boa, o folhetim de Alessandra Poggi construiu um universo próprio. Os bordões e as gírias de época, a trilha sonora, o canal de TV fictício… Tudo gera um sentimento de linguagem comum e de comunidade entre os telespectadores que acompanham a trama – não é à toa que Garota do Momento tem fãs, edits, memes e até pedidos de merch na internet!
Garota do Momento já nasceu clássica: resgata o melhor do melodrama brasileiro e atualiza o formato das novelas de época, com as reivindicações da nossa época. Eu nem precisava ter escrito este texto todo, porque, resumindo: Garota do Momento é um chuá!
Anora perde o brilho ao ofuscar protagonismo de Mikey Madison
Quando a protagonista perde espaço na própria narrativa
Por Gabriela Matina
Na última semana fui assistir Anora no Quinteiro, um bar no Floresta que exibe filmes de graça todas as quartas e, às vezes, na quinta-feira também. É uma opção legal para encontrar aquele amigo que tem a agenda muito cheia nos finais de semana ou só para sair da rotina mesmo.
Agora indo para o filme, Anora, ou Ani, como prefere ser chamada, é uma menina de 23 anos que trabalha em uma casa de strip. Ela se relaciona diariamente com homens esquisitos, geralmente com pelo menos o dobro da idade dela ou até mais do que isso. Até que um dia conhece Ivan, um jovem de 21 anos filho de um oligarca russo. Além de pagar pelos serviços dela, ele também quer conhecê-la melhor.
Ivan trata Anora bem melhor do que os outros clientes da boate e tem conversas de igual para igual com ela – apesar da desigualdade de classe gritante entre os dois. Depois de se conhecerem, ele faz uma proposta para que Anora seja exclusivamente sua namorada por uma semana, em troca de 15 mil dólares.
Ela, claro, aceita prontamente. No fim desses sete dias, os dois acabam se casando para que ele não precise voltar para a Rússia para trabalhar na empresa do pai. Durante esse tempo, Ivan apresenta ela aos amigos, eles vão a festas, viajam e se divertem juntos. Por alguns instantes, Anora parece viver um sonho. Até aí tudo bem interessante.
Tudo corre bem até que os capangas do pai do menino aparecem para anular o casamento e, desesperado com a possibilidade de se encontrar com os pais que estão vindo da Rússia para ver o casamento desfeito, Ivan foge, deixando Anora para trás. É a partir daí que o filme começa a desandar.
O problema é que Anora é um filme longo demais para um roteiro que não se aprofunda nos personagens. Muitas cenas poderiam ser cortadas, e diversas questões ficam sem resposta. Não sabemos, por exemplo, o que fazem os pais de Ivan ou por que ele tem tanto medo deles a ponto de fugir e abandonar a esposa nas mãos de três homens.
Não sabemos como Anora chegou aquele trabalho ou se é feliz ali. Apenas descobrimos que fala russo (um dos motivos para ter se conectado com Ivan) por causa da avó imigrante. Mesmo assim, a atuação de Mikey Madison não deixa de ser um dos pontos altos do filme.
Mas Anora me perdeu completamente depois do segundo ato. A relação entre os protagonistas, que dura pouco mais de uma semana, não justifica a transformação da personagem principal. No início, ela se mostra independente e totalmente no controle da própria vida, mas, conforme a trama avança, vai gradualmente perdendo brilho.
Claro, faz sentido que ela tenha se interessado pelo mimado. Talvez tenha sido uma das poucas vezes em que encontrou alguém da sua idade no ambiente onde trabalha. Mas ele, no fim das contas, é apenas um garoto chato, que gasta dinheiro em festas, drogas e viagens com os amigos. A falta de ação de Ivan no desfecho do filme torna tudo ainda mais frustrante.
Sean Baker me cativou muito mais em Projeto Flórida, onde acompanhamos a vida de crianças que vivem em um motel no subúrbio do sudeste dos Estados Unidos – o mesmo estado onde tantas outras crianças ricas passam férias, explorando o mundo mágico da Disney e das compras em outlets. Com crianças se divertindo enquanto os adultos ao seu redor lutam para sobreviver, o filme constroi um retrato do “sonho americano”.
Sendo assim, me parece que uma das marcas do cinema do diretor é explorar perspectivas pouco abordadas no cinema. Mas em Projeto Flórida, ele sem dúvidas acerta mais ao humanizar seus personagens. A fotografia dos dois filmes também é bem diferente. Enquanto Anora aposta em tons frios e cenas noturnas, Projeto Flórida é vibrante, diurno, com cores saturadas que traduzem o calor da região e o olhar inocente das crianças, mesmo diante das dificuldades.
Em Anora, Baker volta a abordar a desigualdade de classes. A garota precisa se prostituir para sobreviver, enquanto Ivan vive em uma mansão com seguranças, empregados, cartões de luxo na garagem, elevador e uma vista panorâmica da cidade. Mas, ao longo do filme, a protagonista perde completamente sua força e até mesmo o próprio protagonismo. Depois da primeira hora, a trama se torna desinteressante e o paradeiro de Ivan, que vira o foco principal durante cerca de quarenta minutos de filme, era totalmente previsível.
De repente, Anora se torna ingênua e perde toda a autonomia que demonstrava no início. Grande parte das piadas da “dramédia” também não funcionam para mim. Passei o filme esperando o momento em que ele me convenceria de que merecia todas as premiações que tem recebido – Palma de Ouro em Cannes, Critics Choice de Melhor Filme e uma série de indicações ao Oscar. Mas esse momento nunca chegou.
Sex and the City de volta: por que nos identificamos com nova iorquinas de 35 anos do final dos anos 90?
Nós estávamos nascendo e Carrie Bradshaw já tinha casa própria, um emprego estável e uma grande coleção de sapatos de grife – tudo isso em Nova Iorque
Por Clara Campos
No último ano, a única série que tentei acompanhar foi a famosa Sex and The City, indicação da minha melhor amiga, Letícia. Como todo início de seriado, demorei um pouco para me situar, mas logo me envolvi com a história das amigas Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda, quatro mulheres na faixa dos 35 anos e solteiras, como a própria série as apresenta. O enredo se passa na cidade de Nova Iorque entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000 e acompanha a vida cotidiana das quatro personagens principais.
A série é conduzida pela narração exclusiva de Carrie Bradshaw, jornalista de um grande jornal da cidade. Carrie escreve na coluna “Sex and the City”, na qual aborda temas sobre dia a dia, gênero, relacionamentos amorosos e, claro, sexo e a cidade de Nova Iorque. Mas, sobretudo, a personagem principal escreve sobre a própria vida e a de suas amigas: arrisco dizer que o tema principal de seus textos é a amizade do grupo e como as experiências que elas vivem, cada uma à sua maneira, podem ser de alguma forma universais para várias mulheres e, até homens também.
Nos últimos meses, a premiada Sex and the City – a série já garantiu diversos dos prêmios mais importantes da televisão como Emmys e Globos de Ouro – ressurgiu do nada e caiu no gosto dos jovens, sobretudo das mulheres, gerando vários memes nas redes sociais e até discussões sérias sobre as personagens e as situações vivenciadas por elas. Diferentemente de muitas produções televisivas, sobretudo estadunidenses, Carrie, Charlotte, Samantha e Miranda são personagens complexas, que poderiam ser e, muitas vezes são, mulheres reais. Quem é que não tem uma amiga estilo Carrie na vida?
O poder da amizade!
Individualmente, as protagonistas são bem diferentes umas das outras, cada uma com um tipo de personalidade, sonhos, medos, defeitos e qualidades diferentes. Mas, apesar das diferenças, todas elas convivem bastante e de forma harmoniosa. É realmente fato de que Carrie, Charlotte, Samantha e Miranda são amigas para “toda hora”, sempre se apoiando nas adversidades, algumas bem esquisitas inclusive, e curtindo os bons momentos da vida juntas. As famosas mesas de cafés e almoço das personagens se tornaram símbolos da série. Afinal, nada como sair para almoçar com as suas melhores amigas e falar sobre a vida de cada uma - e dos outros também!
Honestamente, em meio ao mundo patriarcal no qual nós crescemos e vivemos, com tantos desafios para se ter uma amizade verdadeira entre mulheres, o protagonismo da amizade em Sex and The City parece um refresco. Diante dos milhares de produtos culturais como filmes, séries, novelas, músicas e, até, desenhos animados que persistem até hoje e nos ensinam que mulheres devem competir entre si, uma série do final dos anos 1990 que exalta a união feminina é de se impressionar. Carrie e suas amigas não têm um relacionamento perfeito, às vezes discordam e discutem entre si mas, no final das contas, sempre se ajudam e querem a felicidade das outras.
No entanto, a série pode parecer se concentrar no fato de que elas são mulheres que têm mais de trinta anos e não são casadas, o que é visto como uma grande questão pelo grupo, de maneiras positivas e negativas. O casamento parece uma grande finalidade na vida de uma mulher e todas elas, naturalmente ou não (Oi, Charlotte!), deparam-se com essa possibilidade em meio à correria do trabalho e da vida no geral.
Por que Carrie Bradshaw nos faz passar tanta raiva?
Apesar de ser uma série um tanto progressista para os anos 1990-2000, o enredo de Sex and The City ainda acaba se concentrando muito no relacionamento entre Carrie e o tal Mr. Big - grande empresário e magnata de Manhattan. Entre idas e vindas, a relação complexa e conturbada entre os dois dá pano para manga a série inteira e me faz questionar: por que uma mulher gente boa, bem sucedida, de cabelo impecável e interessante como a Carrie me irrita tanto? Por que ela frequentemente faz escolhas de vida tão pouco inteligentes? Por que ela não larga esse Mr. Big e vai viver a vida? Todos têm seus momentos, mas será que a Carrie na verdade é simplesmente burra? São tantas questões…
O mais revoltante na Carrie é justamente o fato de que ela é uma mulher real, que passa por situações ruins e que comete erros que tantas de nós já cometemos e vimos nossas amigas cometerem. A maior diferença entre nós e a protagonista de Sex and The City talvez realmente seja a de que enquanto estávamos nascendo ela já tinha uma casa própria, um emprego estável e uma grande coleção de sapatos de grife. E, provavelmente, a maior semelhança também possa ser a de que ter um grupo de melhores amigas fieis pode tornar sua vida muito mais leve, agradável e bonita.
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Uma Reunião à Mesa: Belchior e Os Mutantes
Por Vinícius Ramalho*
É possível notar algumas semelhanças muito claras entre as músicas “Na Hora do Almoço”, de Belchior, e “Panis et Circenses”, d'Os Mutantes, uma vez que elas não apenas criticam a sociedade e a família tradicional brasileira no período da ditadura militar, mas também porque fazem o mesmo paralelo, ambientando suas ideias em uma reunião familiar à mesa. Essas semelhanças são intrigantes por si só, mas o que mais chama atenção são as peculiaridades na visão de cada artista, que os permitiram levar a mesma crítica por dois caminhos bem distintos.
Panis et Circenses
Lançada em 1968, a canção “Panis et Circenses” foi composta por Gilberto Gil e Caetano Veloso e ganhou fama no nascimento do tropicalismo com a interpretação de Os Mutantes. A composição de dois gigantes da música nacional retrata a alienação da população brasileira no período ditatorial. O nome da faixa escancara essa relação ao referenciar a política do pão e circo praticada na Roma antiga.
Com uma musicalidade psicodélica, a canção nos convida a caminhar por cenários fantásticos e disruptivos, onde todas as ações do eu-lírico são incapazes de surtir qualquer efeito na sociedade — aqui representada pelas pessoas sentadas à mesa de jantar — que só se importa com seus problemas e escolhe ficar alheia ao mundo ao seu redor.
O desejo reprimido de mudança é tema central logo na primeira estrofe, retratando uma classe artística que anseia por quebrar normas preestabelecidas e se rebelar contra ideias ultrapassadas. É importante observar, entretanto, um claro distanciamento entre o eu-lírico e essa sociedade criticada: a classe artística representada não se vê fazendo parte dessa reunião à mesa, mas se enxerga como um agente revolucionário externo que tenta desmontar o status quo.
Em meio a todos esses cenários causadores de desamparo, os compositores ainda encontram espaço para retratar esperança. As plantações de sonhos no jardim do solar, citadas na música, fazem referência à pensão onde Gil e Caetano se hospedaram no Rio de Janeiro, e podem ser entendidas como a esperança que eles cultivavam em um futuro melhor.
Nos últimos trinta segundos da faixa, ocorre uma interrupção abrupta, que abre espaço para a representação das tão citadas pessoas na sala de jantar. Ao fundo, em meio ao caos e à confusão que toma conta da mesa, é possível ouvir “Danúbio Azul”, de Johann Strauss II. A escolha pela música clássica não é aleatória, pois ela remete à ideia de uma sociedade arcaica e extremamente apegada ao passado.
Alguém poderia pensar que essa representação é apenas um floreio do psicodelismo que Os Mutantes imprimiam em suas músicas, mas vejo nesta cena algo muito mais profundo. A barreira entre o real e o ficcional se quebra. Como um ator que quebra a quarta parede, a canção nos coloca à mesa de jantar, mostrando que os ouvintes também fazem parte dessa sociedade que cultua o passado. A música deixa de ser apenas um meio para descrever hipotéticos desejos reprimidos de mudanças, agora ela é a materialização desse sentimento na realidade e está fadada a ser propositalmente ignorada como todas as outras tentativas nela descritas.
Na Hora do Almoço
Belchior recicla a representação de uma sociedade à mesa de jantar para traçar um paralelo com a obra d’Os Mutantes, mas retira os conceitos de rebeldia e pauta sua crítica na filosofia política. A composição fala sobre a opressão e o constante medo sentido pelo eu-lírico em meio a um sistema totalitário, revisitando o conceito clássico do “Leviatã”, de Thomas Hobbes.
A principal discordância de Belchior em relação à obra dos tropicalistas pode ser observada na maneira como ele se posiciona perante essa sociedade. Aqui, ele faz questão de entender seu lugar como ser presente na mesa de jantar, ou seja, ele se enxerga como parte dessa sociedade que tanto o oprime.
Outra discordância menos direta pode ser entendida na diferença de tom das duas obras. Enquanto a canção d’Os Mutantes expressa sonhos e esperança, a tristeza e o medo sentidos por Belchior são o prato principal servido em cada verso dessa nova reunião à mesa. A rabeca — instrumento de corda muito similar ao violino e comumente utilizada em forrós — está presente ao longo da música, criando uma tensão constante que reforça o sentimento de medo no ouvinte, além de fazer referência às raízes nordestinas de Belchior.
Para Hobbes, o medo é a base da existência humana. O homem, em seu estado natural, vive com temor do que outro homem possa lhe fazer, e por isso, no alto de sua liberdade, escolhe guerrear com outros de sua espécie. Essa é a justificativa para a criação do Estado hobbesiano, que concentra diversos poderes em um único representante de modo a, em nome da paz, controlar a população pelo medo. Esse representante é simbolizado pela imagem do Leviatã, e cada um de seus adornos faz referência a um dos poderes sob seu controle. Belchior faz referência a esse pensamento no ponto de vista de um desses homens controlados pelo medo.
A descrição do pai da família que se senta à mesa nos apresenta esta figura aos poucos, permitindo à nós montar mentalmente uma imagem quase grotesca que simboliza o Leviatã. Aqui, o poder do Estado, representado pelo monstro e pelo pai, se encontra enfraquecido sem seus adornos. A coroa não existe e abre espaço para uma figura decrépita de boca aberta e mãos vazias, sem a presença da espada ou do cetro. O corpo do grande rei está desprovido de seus súditos, sendo descrito como "deserto". Nesse contexto, entende-se que a imponência do Estado totalitário brasileiro era vazia e sustentada unicamente pelo medo.
Esse pai, mesmo enfraquecido, se senta à cabeceira da mesa, mantendo o punho cerrado e causando medo no eu-lírico. Aqui, é importante notar como Belchior propõe sua crítica em duas camadas: essa mesa de jantar não representa apenas a vida pública e política, mas também serve como instrumento para entender como esses conceitos totalitários e conservadores se alastram e infectam os núcleos familiares. Dessa forma, o desentendimento gerado à mesa nos remete à polarização de um Estado dividido.
A música se encerra com duas últimas estrofes que mais se parecem uma prece de um jovem desesperançado, nos fazendo entender que já não existem ações possíveis para mudar tal sociedade. A única coisa que resta é tentar viver, escondendo, em seu último verso, um grito visceral de ajuda à Nossa Senhora Aparecida.
*Vinícius Ramalho é um estudante de psicologia fascinado por questões sociais e pelas influências da cultura na subjetividade humana. Encontrou na música e na escrita suas verdadeiras paixões.
Uai, cadê a agenda? 🤔
Pois é, caros leitores… nesta edição, não vamos ter a nossa já tradicional agenda cultural, com tudo que tá pra rolar na região de BH. Isso porque, ela estará presente na semana que vem, em um formato inédito da Wanda!
honestamente? achei um lacre essa edição
a cada edição me surpreendo mais com o trabalho de vocês! essa, particularmente, me abriu um universo que ficou lá no meu passado: o sucesso de uma novela atual. eu não sei em que bolha eu estava - ok, eu já tinha visto edits do pedro novaes - mas eu não sabia mesmo que a novela das 6 tava fazendo esse sucesso todo. e adorei saber que a direção da novela é do jeferson de! quando fiz jornalismo, tínhamos uma disciplina só sobre cinema e lembro de ter feito um trabalho sobre o de e o filme bróder (e o dogma feijoada, que o jeferson fez inspirado no dogma 95. é bem legal). os outros tópicos da news também estão sensacionais. vocês estão arrasando muito <3